Enfant

lundi, juin 22, 2009

“Com o trabalho da alma e a ajuda da literatura” (Sokurov – II)


O que sente quando o comparam com Andrei Tarkovski?

Não sinto nada. Tivemos relações boas mas somos pessoas diferentes.

Mas há alguns pontos de semelhanças entre os filmes de um e de outro, por exemplo, no tratamento da cor e do preto e branco.

Também há semelhanças com Ingmar Bergman e outros realizadores. O que nos liga, Tarkovski e eu, é a Pátria. Ambos somos russos.

Sente-se um autor “espiritual”?

Sim, é verdade. Era o principal para Tarkovski. Por isso, é difícil fazer filmes como os dele. Mas o mais difícil é saber como estabelecer um contacto através dos filmes.

É importante para si ter, através dos filmes, uma relação com Deus?

A questão de Deus é muito importante, mas não gosto do modo como Deus criou o mundo.


Mas em Mãe e Filho, o filho diz: “A criação é uma coisa maravilhosa.”

Eu sou mais livre do que as personagens do filme. Os realizadores devem ser mais livres do que as personagens.

Como consegue fazer tantos filmes?


Com o trabalho da alma e a ajuda da literatura. O “meu Deus” é a literatura, muito mais que o cinema.

Mas a pintura também é importante?

Em segundo lugar, depois da literatura. A pintura é a base do cinema, a literatura é a base espiritual.

Os seus filmes apresentam-se sempre como matéria sensível: a matéria da terra, da água, etc.

Tento criar nos filmes o meu mundo, não uma abstracção — um mundo real, mas meu. Nos meus filmes não está o mundo que Deus criou mas o que eu criei.

Como trabalha a imagem? Usa filtros, planos de pinturas?

Utilizo lentes especiais e a minha experiência de pintor. O pintor, no seu trabalho, usa diferentes técnicas. Eu, por exemplo, uso vidros pintados como modelos. São coisas muito simples, mas criadas para cada um dos filmes.

Nos seus filmes existe a literatura e a pintura, mas também a música e a importância do trabalho sobre o som.

A música é a alma do realizador, a imagem são as pernas. Quando trabalho penso em criar dois filmes, o da imagem e o da música, que devem ser independentes. Nem sempre o consigo mas tento. O director de som deve criar uma obra independente.

Acha que a música e o som são mais puros, que a imagem já está corrompida por tantos anos da história do cinema?

A música e o som não são totalitários como a imagem. O som é mais abstracto, está mais perto da natureza que a imagem. O som nunca pode ser velho, é sempre novo, e a imagem pode envelhecer.

Então a imagem é totalitária?

A imagem prende os homens e, nesse sentido, é totalitária. Quando um homem ouve, a sua imaginação está livre, e quando vê não está, porque só pode imaginar o que está a ver.

Trabalha em documentário e ficção. Como se relacionam os dois trabalhos?

São a mesma coisa. Às vezes é muito mais difícil fazer um documentário que um filme de ficção. Posso comparar o documentário com uma terapia e o filme de ficção com uma cirurgia. Quando a doença não é muito grave recorro à terapia; quando o é faço cirurgia.

Tem vindo a fazer uma série de filmes documentais que se chamam “Elegias”. A morte parece ser uma questão importante no seu cinema.

O mais importante nos meus filmes é a luta da vida contra a morte. Não tenho prazer em pensar na morte.

No entanto, disse que o objectivo da arte era preparar o homem para a morte.

Sim, é verdade. A arte tem muitos objectivos mas o principal é preparar o homem para a morte. Quando vemos os filmes sobre a morte, quando lemos os livros sobre a morte, estamos a preparar-nos, mas nunca estamos prontos.

Disse que cada vez que entramos numa sala de cinema deixamos nela hora e meia da nossa vida.


O homem não paga por nada um preço tão grande como por ver um filme. Entra na sala e quando sai já gastou uma parte da única vida que tem. É uma hora e meia que nunca voltará a existir na vida do espectador e essa medida deve ser uma responsabilidade para o realizador.


Como foi o seu encontro com Soljenitsine, com quem fez O Nó?

Foi uma grande honra. Não esperava encontrar-me com Soljenitsine porque ele é muito solitário. Mas ele tinha visto os meus filmes e quis conhecer-me. Telefonou-me e perguntou se nos podíamos encontrar. Eu fiquei agitado, disse que não tinha tempo. Mas depois encontramo-nos e falámos longamente. Estivemos de acordo em muitas coisas, noutras não, mas gostei muito do encontro.


Então. ao contrário de Soljenitsine, não se sente um profeta?

Não. Tento simplesmente criar o meu mundo, que não é o do passado, o do futuro, ou o do presente.

Sente-se nacionalista?

Gosto muito da cultura russa e, nesse sentido, posso ser considerado nacionalista. Mas não gosto da vida russa.

Mas também não gosta dos valores do Ocidente.

Adoro a arte ocidental do século XIX, mas dos actuais valores ocidentais não gosto. Gosto da cultura do século XIX, ocidental e russa.



Extractos de uma entrevista no “Público” de 21-07-99

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