Enfant

lundi, avril 09, 2007

Li e recomendo: Como me tornei estúpido - Martin Page


A ignorância é um dom para Antoine, personagem principal da sátira de Martin Page, Como me tornei estúpido. Para o jovem estudante de aramaico, filho de pai birmanês e mãe bretã, a inteligência e a consciência crítica se transformam em empecilhos para alcançar a felicidade na sociedade atual. Por isso, o anti-herói criado pelo autor francês decide investir na idiotice como forma de sobrevivência: do alcoolismo ao antidepressivo, ele tenta todos os meios possíveis para se tornar uma nulidade. O livro é um caso extremo e bem-humorado de rebeldia contra uma sociedade que exige a estupidez como passaporte e oferece a massificação como recompensa. Como me tornei estúpido faz parte do Safra XXI, selo lançado em 2004 pela editora Rocco com edição gráfica diferenciada e proposta ousada de lançar autores jovens e talentosos.
Decidido a parar de sofrer por causa de uma consciência que o impede de aceitar as injustiças do mundo, Antoine tenta sem sucesso virar alcoólatra, suicidar-se e até fazer uma cirurgia para retirar uma parte do cérebro. As tentativas frustradas do jovem protagonista são descritas com fina ironia e imagens nonsenses que beiram o surrealismo. Mas a redenção de Antoine vem com o emprego numa corretora de ações de um ex-colega de escola, que junto com o Felizac, antidepressivo receitado pelo seu médico boa-praça, são o antídoto perfeito contra a inteligência e a consciência crítica do rapaz.
O protagonista passa então a freqüentar o mundo dos bem-sucedidos executivos financeiros de Paris, fica milionário de uma hora para outra, e tenta de todas as maneiras se adaptar à sua nova condição – entre outras coisas isso significa comprar, comprar, comprar, enquanto a sua consciência dorme. Mas as peripécias de Antoine não duram muito. Entre um intervalo e outro de Felizac, o herói de Page fica vulnerável ao seu próprio veneno, ou seja, seu cérebro ainda dá sinais de estar vivo e sua dificuldade de sentir-se um membro efetivo da sociedade vem à tona. Até que o "resgate" de fato acontece, de uma forma nada convencional, para concluir, depois de uma série de experiências que beiram o surreal, a história engendrada pela imaginação fértil do autor.
Como me tornei estúpido é uma agradável surpresa com sotaque parisiense, mas levanta questões universais. O livro faz uma crítica afiada ao consumismo e ao pretenso livre-arbítrio que torna todos semelhantes na sociedade de massa. Martin Page possui uma escrita saborosa, recheada de citações e referências, em especial ao cinema. Influência confessa do surrealista Boris Vian, comparado pela crítica a Tchekov e Jane Auster, considerado por outros uma versão atual de Voltaire e seu Cândido, o otimista, a estréia do jovem francês é um sopro de humor e vitalidade na prosa francesa atual.
Comentários da crítica:
"Uma harmoniosa e surpreendente mistura de otimismo e niilismo"
La Vie Magazine
"Filho de pai birmanês e mãe bretã, dono de um currículo universitário labiríntico, Antoine recusa-se a deixar-se engolir por uma sociedade em que até mesmo as pesquisas de opinião não admitem opiniões. Decide, então, encontrar o caminho da nulificação pela idiotice. Essa empreitada rumo à cretinice, que consiste em se empenhar na transformação em um ninguém, não é para qualquer um... Deste percurso do Ser ao Nada, completamente surpreendente e absurdo, Martin Page fez um romance coberto de razões e que revela um escritor que domina seu estilo tão bem quanto seu humor fino e sutil."
Le Monde








Trecho do livro Como Me Tornei Estúpido, de Martin Page


SEMPRE PARECERA a Antoine contabilizar sua idade como os cães. Quando tinha sete anos, ele se sentia gasto como um homem de quarenta e nove anos; aos onze, tinha desilusões de um velho de setenta e sete anos. Hoje, aos vinte e cinco, na expectativa de uma vida mais tranqüila, Antoine tomou a decisão de cobrir o cérebro com o manto da estupidez. Ele constatara muitas vezes que inteligência é palavra que designa baboseiras bem construídas e lindamente pronunciadas, e que é tão traiçoeira que freqüentemente é mais vantajoso ser uma besta que um intelectual consagrado. A inteligência torna a pessoa infeliz, solitária, pobre, enquanto o disfarce de inteligente oferece a imortalidade efêmera do jornal e a admiração dos que acreditam no que lêem.
A chaleira começou a emitir um assobio sofrido. Antoine verteu a água fremente numa xícara azul decorada com uma lua rodeada de duas rosas vermelhas. As folhas de chá se abriram turbilhonando, difundindo a sua cor e o seu perfume, enquanto o vapor se evolava e se mesclava ao corpo do ar. Antoine sentou-se à escrivaninha diante da única janela do seu estúdio em desordem.
Ele passara a noite escrevendo. Em um grande caderno pautado, após muitas tentativas, após páginas de rascunho, ele enfim conseguira dar forma ao seu manifesto. Antes disso, durante semanas ele se extenuara para encontrar pretextos, para imaginar subterfúgios desafiadores. Mas terminara por admitir a pavorosa verdade: era o seu próprio espírito a causa da sua infelicidade. Nesta noite de julho, Antoine tinha, pois, anotado os argumentos que deviam justificar a sua renúncia ao pensamento. O caderno permaneceria como testemunho do seu projeto, para o caso de ele não sair incólume de tão perigosa experiência. Mas sem dúvida ali estava, acima de tudo, o meio de ele próprio convencer-se da validade de seu malogro, uma vez que essas páginas de justificativas tinham o aparato de uma demonstração racional.
Um passarinho tamborilou o bico na vidraça. Antoine ergueu os olhos do caderno e, como para responder, tamborilou com a caneta. Bebeu um gole de chá, esticou-se na cadeira e, passando a mão nos cabelos um tanto gordurosos, pensou que precisava roubar xampu do mercado da esquina. Antoine não se sentia com alma de ladrão; não tinha suficiente agilidade para isso, razão por que surrupiava tão-somente aquilo de que tinha necessidade: um xampu que comprimia discretamente numa pequena caixa de bombons. Ele procedia da mesma maneira com relação à pasta de dentes, ao sabonete, ao creme de barbear, às passas, às cerejas; arrecadando o seu dízimo, furtava, quotidianamente, nas grandes lojas e supermercados. Igualmente, por não ter dinheiro suficiente para adquirir todos os livros que desejava e tendo observado a acuidade dos guardas-noturnos e a sensibilidade dos aparelhos de segurança das megalivrarias, roubava os livros página por página e reconstituía-os no seu apartamento, como um editor clandestino. Sendo obtida por delito, cada página adquiria um valor simbólico muito maior do que teria se estivesse colada e perdida entre os seus pares; destacada de um livro, furtada, e depois pacientemente reunida, tornava-se sagrada. A biblioteca de Antoine contava, assim, com uma vintena de livros reconstituídos na sua preciosa edição particular.
Então, quando o dia acabava de raiar, exausto pela noite em claro, ele se apressou a dar uma conclusão à sua proclamação. Após um instante de hesitação com a extremidade da caneta entre os dentes, ele começou a escrever, a cabeça pendendo sobre o caderno, a língua a percorrer a borda dos lábios:
"Não há nada que me enerve mais do que essas histórias em que o herói, no final, voltará à situação inicial após ter vencido qualquer coisa. Ele terá corrido riscos, terá saído vitorioso das aventuras, mas, no fim, voltará a estar como no princípio. Não quero participar dessa mentira: fazer de conta de que não se conhece a conclusão de tudo isso. Sei perfeitamente que essa viagem à estupidez vai transformar-se num hino à inteligência. Será a minha pequena Odisséia pessoal: após muitas provações e aventuras perigosas, encontrarei Ítaca. Sinto já o odor de aguardente e de folhas de videira recheadas. Seria hipócrita não dizê-lo, não dizer que, desde o início da história, se sabe que o herói vai safar-se, que ele até vai sair engrandecido por causa das provas. Um desfecho artificialmente construído para parecer natural proclamará uma lição do gênero: ‘É bom pensar, mas é preciso aproveitar a vida.’ O que quer que digamos, o que quer que façamos, haverá sempre uma moral a brotar nos prados da nossa personalidade.
"Hoje é quarta-feira 19 de julho, e o sol decide enfim deixar o seu refúgio. Eu gostaria de poder dizer, na conclusão desta aventura, como certo personagem do filme Nascido para matar: ‘Estou num mundo de merda, mas estou vivo e não tenho medo.’"
Antoine pousou a caneta e fechou o caderno. Bebeu um gole de chá, mas o líquido tinha esfriado. Espreguiçou-se e esquentou a água num pequeno fogareiro a gás pousado no chão mesmo. O passarinho tamborilou com o bico no vidro da janela. Antoine abriu a janela e pôs um punhado de grãos de girassol no parapeito.

5 Comments:

Anonymous Anonyme said...

viiixe!!! e como tem gente que nem precisa desse "esforco extra" pra se tornar estupido, ne?

cala-te boca!!!...rsrsrs

mardi, avril 10, 2007  
Anonymous Anonyme said...

"A inteligência torna a pessoa infeliz, solitária, pobre..."

e-x-a-t-a-m-e-n-t-e !!!

so os estupidos eh que conseguem passar por essa vida, repleta de mazelas, com um sorriso estampado no rosto o tempo inteiro...

mardi, avril 10, 2007  
Blogger garoto_lhama o lado negro da lhama said...

adorei esse livro, li e tb recomendo
:)

jeudi, janvier 03, 2008  
Anonymous Anonyme said...

.

samedi, mai 17, 2008  
Anonymous Anonyme said...

This is great info to know.

mardi, novembre 11, 2008  

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